Kyoto foi a capital do Japão por mais de 1.000 anos, símbolo da cultura tradicional japonesa e do budismo.
No total Kyoto tem cerca de 1.660 templos budistas, mais de 400 santuários Shinto e 90 igrejas cristãs. Um paraíso para quem gosta de fotografia…
Lembro bem que o meu primeiro dia sozinho no Japão tive alguma dificuldade para me familiarizar com o sistema de metrôs e localizar os monumentos de interesse, mas sempre encontrei alguém para me ajudar. Teve uma vez, voltando de um dos passeios, em que perdi o senso de direção e não conseguia achar o metrô. Pedi ajuda para uma mulher, que pela vestimenta parecia trabalhar na área de segurança. Ela me acompanhou por quase três quarteirões e me deixou na entrada do metrô e depois retornou na direção que viera. ELA, CLARAMENTE, SE DESVIOU DO SEU CAMINHO PARA ME AJUDAR.
Sempre que posso, tento visitar bairros distantes dos pontos turísticos para sentir como vive a população e não ficar somente com a impressão que os turistas carregam da cidade. Sempre encontro algo “interessante".
O FATO MAIS INTRIGANTE ACONTECEU QUANDO PEGUEI a linha Karasuma Line e depois a Kintetsu Kyoto Line do metrô rumo ao extremo sul de Kyoto. É SOBRE ISTO QUE GOSTARIA DE FALAR HOJE.
Perambulei por horas num bairro, visivelmente NADA turístico, e parei num restaurante coreano para almoçar. Nada de luxo, na verdade bastante simples.
Como eu só havia experimentado dois pratos da cozinha coreana (yakiniku e kimchi), optei pelo que gostava: yakinuku (um prato de carne e legumes grelhados por você numa grelha a gás, acompanhado por molho de soja misturado com saquê).
Não passei desapercebido aos olhos dos outros quatro clientes do restaurante. Eu era um estranho no ninho, o único ocidental. Fiquei imaginando o que estavam pensando de mim.
Pouco antes de finalizar o meu almoço, um senhorzinho, mais velho do que eu, olhou diretamente para mim, sorriu e me cumprimentou com um aceno com a cabeça. Fiz o mesmo.
Meu gesto o motivou a dizer algo e sentar-se a minha mesa. Tentou falar comigo, não sei se em japonês ou coreano. Disse, em inglês, que não entendia.
O dono do restaurante, atendo ao que se passava, chamou um jovem que se encontrava na cozinha - este falava inglês razoavelmente bem.
A partir daí, os outros três se sentaram à mesa e iniciou-se um diálogo bilingue truncado pela tradução…
Quiseram saber sobre minha origem, por que estava lá, em que eu trabalhava, o que estava achando de Kyoto, se tinha gostado da comida, o que eu tinha visitado e coisas assim.
Aproveitei para saber deles. Como era viver no Japão. Confesso que aprendi muito.
“Eu sou um burakumin", disse o idoso sorridente.
Eu nunca havia ouvido este termo e acabei recebendo uma verdadeira aula de história japonesa.
No Japão antigo havia o sistema de castas como na Índia.
A pirâmide era formada, no topo pelos samurais, seguido pelos fazendeiros, artesãos e na base pelos mercadores. Além deles existiam os burakumin, que eram considerados impuros e inferiores. Eram originalmente membros de comunidades rejeitadas na era xintoísta e budista do século XVIII, compostas por pessoas com ocupações consideradas impuras ou contaminadas pela morte (como carrascos, funerários, trabalhadores de matadouros, açougueiros ou curtidores). Essas pessoas carregavam estigma social de "contaminados” ligado a si.
Por esta razão viviam em guetos e isolados da sociedade.
Somente no século XIX puderam morar fora dos guetos, mas o preconceito continuou e só conseguiam trabalhos como carniceiros, funerários, e em outras profissões 'impuras', como saneamento.
"Atualmente, o preconceito é muito menor, proibido por lei. De 2 a 3% da população do Japão é formada por burakumin".
O jovem tradutor me disse ainda que esconde suas origens para evitar o preconceito. Ele disse que certas empresas demitem o funcionário, se ele revelar sua origem burakumin. O pior, segundo ele, é que existem, ainda hoje, famílias japonesas que pesquisam a origem do pretendente a casamento para evitar que seus filhos ou filhas se casem com algum membro de origem burakumin.
O jovem tradutor me contou o seguinte: "certa vez, minha esposa e eu estávamos visitando parentes do pai dela e quando eu disse a eles o que eu fazia, eles pararam de me servir cerveja."
Em meados da década de 1970, um grupo que luta pelos direitos dos burakumin descobriu a existência de uma lista manuscrita de 330 páginas de nomes Buraku e locais da comunidade que viviam. Essa lista estava sendo vendida secretamente aos empregadores por correspondência.
“E pior, muitas empresas japonesas de grande nome estavam usando a lista para rejeitar candidatos a empregos.
Por esta discriminação, no passado muitos burakumin acabavam se associando a Yamaguchi-gumi (a maior facção Yakuza do Japão).
Felizmente", complementa o jovem, “Você não vê tanto discurso de ódio como antes - e aqueles que o tentaram foram forçados a pagar indenização em processos judiciais”.
"Ainda hoje é possível ouvir sobre discriminação no local de trabalho e pichações anti-burakumin, mas as pessoas estão usando as redes sociais para informar quando isso acontece.”
"O velho Japão está se modernizando!”.
Quando olhei para o salão vi que havia mais de dez pessoas atentas à nossa conversa… segundo o jovem tradutor “os brasileiros são muito bem-vistos pelos burakumin por não serem preconceituosos. Talvez por isto o interesse deles em conhecer o professor brasileiro que estava visitando nosso bairro".
Ele tinha razão. Já fazia mais de três horas que lá estávamos quando um senhor, falando em inglês, me convidou para visitar sua casa.
Me despedi do pessoal, cumprimentei um a um no estilo oriental e agradeci a excelente acolhida e a conversa super agradável e esclarecedora.
Antes de sair, tirei algumas fotos com o grupo e me comprometi em não divulgá-las nas redes sociais.
FIQUEI EMOCIONADO COM ESTE ENCONTRO. Falei para mim mesmo: "Sou um sortudo ou as pessoas daqui são realmente cordiais".
Andamos pouco mais de dois quarteirões e chegamos, não numa casa, mas num pequeno ateliê de artes plásticas. “O senhor sabia que muitos artistas famosos são descendentes dos burakumin?” E me citou nomes que não consegui memorizar. Mencionou também que o ex-governador de Osaka era um burakumin.
Nossa conversa, acompanhada de chá verde, tipo Sencha, um chá mais escuro e adstringente do que o chá verde que eu estava acostumado, girou em torno de como a arte cria ponte entre as pessoas e torna o ser humano mais aberto às diferenças.
Seus quadros e desenhos retratavam basicamente "trabalhadores impuros" no passado (açougueiros, pessoas que comiam carne, caçadores, limpadores de rua, coveiros e até prostitutas).
Eu diria que suas obras confrontam, de forma sutil, as pessoas que ainda discriminam os burakumin.
Estava escurecendo quando me despedi do senhor Tadashi que, gentilmente, me acompanhou até a estação do metrô.
Por um momento, fiquei contente de meu irmão não estar comigo. Se estivéssemos juntos nunca iria se aventurar a explorar esse bairro distante. Para mim, foi o dia mais importante desta visita a Kyoto.
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