Ontem, recebi a visita de meu falecido amigo Fernando.
Fiquei surpreso ao vê-lo à porta do meu apto:
“Cara, você não mudou nada!”.
“E você envelheceu pra caralho…e Marlene está ?”
“Não, ela foi levar os pais dela ao médico”
Sem cerimonia foi entrando:
“Seu apto é legal… pelo jeito foi a Marlene que desenhou nesta parede…”
Na cozinha, abriu algumas gavetas e portas dos armários. Pensei que estava procurando algo,
“Posso te ajudar? Quer tomar uma cerveja?”
“Não. Estou olhando quanto de sua vida está estocada em copos e objetos de decoração…”
“Ah???!!!”
Nem consegui reagir, e ele continuou caminhando apartamento adentro.
Abriu a porta do armário do quarto e começou a contar quantas gravatas e paletós eu tinha…
Confesso que fiquei chateado e perguntei o que ele queria.
“Você tem muito tempo da sua vida estocada em coisas. Para que tudo isso?”
“Fernando, eu não estou entendo o que você está querendo dizer”.
“Meu caro Monta, todo bem físico, coisas fúteis ou necessárias que você possui representam tempo da sua vida. Você trocou seu tempo de conhecer, experimentar, viajar, ver e sentir por coisas que estão estocadas em armários, gavetas, sem falar o que está estacionado na garagem… A posse é uma ilusão. O poder é uma ilusão. Eu só entendi isso depois que morri. Deixei tudo para trás… Muito do meu tempo de vida foi acumulado em redundâncias inúteis… Ah se as pessoas entendessem o que significa a vida…”.
“Fernando, você esqueceu que meu lema é : “Carrego comigo todos meus bens”? E meus bens são meus pensamentos, sentimentos , experiências e vivências”…
“Então, troque muito destas “coisas redundantes acumuladas" por "bens" ou doe para que não tem nada…”
Ele não disse mais nada. Foi até o escritório, pegou meu livro “O Eu Profundo e Outros Eus” de Fernando Pessoa.
“Lembro que você ganhou este livro em 1975…" e começou a ler em voz alta o “Guardador de Rebanhos”.
De repente toca o despertador do celular. Abro os olhos. O livro de Fernando Pessoa está caído no chão ao lado da cama.