Fernando me ligou a cobrar de São João do Carú. Estava indignado. Seu celular e sua carteira “sumiram” no segundo dia de jornada. Havia partido de Zé Doca e passaria por Santa Inês, Monção, Penalva e retornaria a Zé Doca. Seriam 16 dias de caminhada pelo Maranhão.
“... O grande culpado é o Sarney. Este homem é o símbolo do político que deve ser banido do Brasil. Um irresponsável, um...” (e outra dezena de adjetivos impublicáveis).
“E nossa carga tributária é praticamente a mesma da Holanda. Muito maior do que a dos Estados Unidos, Bélgica e Suíça... como pode? Estes políticos são incompetentes, safados, ...” e mais 2 minutos de atributos. Afinal, era eu quem estava pagando a conta... (Ligação internacional, via Embratel...)
“Venha caminhar por estas bandas pra você entender o que estou falando. Entender não, “sentir” é a palavra correta”.
Ele tinha razão.
Eu havia escolhido outra jornada. Pieterpad, 237 km de outro mundo, outra realidade. Estava a 3 dias do meu destino, quando ele me ligou para “trocar umas palavras”.
Diferentemente de Fernando, estou cansado da nossa realidade. Cansado da nossa pequenez mental, do nosso subdesenvolvimento, da vileza e incompetência de nossos gestores públicos (e Sarney é a bola da vez). Não quero mais enxergar nada disto. Já vi o bastante, já senti o bastante. Quero agora viver o sonho do que poderíamos ter sido (ou quem sabe seremos um dia, num futuro tão distante que não estarei vivo para ver).
Por isto escolhi caminhar na Holanda de van Gogh, em vez do Maranhão de Sarney.
Partimos de Peterburen com destino a Vorden. Uma trilha bem sinalizada e documentada. Você compra o livro-guia (somente em Holandês) que dá todo o trajeto, as opções de parada, o histórico de cada local, o endereço e telefone das famílias que hospedam os caminhantes em seus lares. Normalmente, casais de idosos, cujos filhos casaram e se mudaram, e seus quartos, agora vazios, se tornam fonte de renda adicional. Tudo legalizado, registrado e tornado público unicamente no livro guia desta trilha. Não se trata de Hostel ou B&D. São casas destinados exclusivamente às pessoas que fazem a Pieterpad.
Fantasia? Para nossa realidade e mentalidade, sim.
Numa cidadezinha chamada Ommen, eu e Marlene ficamos hospedados na residência de um casal super simpático. Nos entregou a chave para abrir (se necessário) a porta da sala que era trancada às 10 horas da noite (quando iam dormir). Antes disto, a porta ficava sempre aberta...
Numa outra casa, o proprietário era um motoqueiro “aposentado”. Sintonia total. Ligou para o filho, que morava a poucos quilometros dali, para trazer sua Harley modificada para eu dar uma volta...
Numa outra casa, ficamos no andar superior, onde havia 2 quartos, um banheiro, e no hall uma geladeira pequena com cerveja, vinho e refrigerante. Ao lado, uma mesinha bem arrumadinha, com vaso de flores, copos, talheres, muffins e chocolates, uma lista de preços e uma caixinha de moedas. Você pegava o que queria, pagava e, se precisasse havia moedas para o troco.
Que jornada! Que trilha maravilhosa! Que exemplo de organização e beleza, mantida pelo cidadão para o bem estar da coletividade.
O verdadeiro desenvolvimento social não é percebido pelo PIB, taxa de desemprego ou escolaridade. Segundo Fernando, o melhor é uma caminhada...
Será que um dia teremos a coragem de entregar as chaves de nossas casas para mochileiros desconhecidos?
Um comentário:
Muito bom.Pena que tenho que concordar que estamos longe de poder confiar tanto nas pessoas assim.
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