quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

ACONTECEU COMIGO!!!? Na Alemanha…uau?

 


Adoro a Alemanha. Em 2010, fiz de triciclo a turística Rota Romântica. Foram pouco mais de 400 km entre Würzburg e Füssen. 

As cidadezinhas medievais sempre me atraíram…

Minha parada favorita neste trajeto foi Rothenburg ob der Tauber. Passei 4 dias por lá. 

A cidade é linda, com ruas de paralelepípedo, casinhas lindas usando o método construtivo enxaimel, todas decoradas com flores e fachadas coloridas…um conto de fadas.

Rothenburg ob der Tauber em 1.170, em plena Idade Média e já tinha a praça central (Marktplatz), a Igreja de St. Jakob e o Castelo Staufer. 

Três quilômetros de muralhas e torres, construídas durante o século XIII, circundam a cidade… e é possível caminhar por elas.

Me hospedei no hotel Alte Brau­haus, por estar bem no centro e ter um bom estacionamento para o triciclo. O edifício foi no passado um antiga cervejaria, mas as acomodações eram ótimas.

No meu segundo dia, um sábado, desci para tomar o café da manhã. Todas as mesas estavam ocupadas. Um senhor, que estava sentado sozinho, acenou para que eu compartilhasse a mesa com ele. 

Seu nome era Asa Carter, um americano cinquentão, simpático disse que conhecer Rothenburg fazia parte da sua Bucket List (lista do que fazer antes de morrer). 

Acabamos ficando amigos. Tomamos muita cerveja juntos. 

Após tomarmos mais cervejas e Steinhaeger Schlichte do que deveríamos, na noite de segunda, numa mesa de bar, veio a surpreendente revelação. Ele me contou sua história. Asa Carter não era um turista comum. 

O filme "Fora da Lei" dirigido e estrelado por Clint Eastwood foi baseado em um de seus livros ("Gone to Texas") que escreveu com o pseudônimo de Forrest Carter.

“Por que você não usou o seu próprio nome?”, indaguei para meu colega.

"Meu verdadeiro nome, Asa Earl Carter, deixou de ser bem visto. Adotei Forrest Carter para fugir do meu passado. Deixei o bigode crescer mudei meu cabelo e de estado”, responde meu colega.

“O que aconteceu?” pergunto.

Ele sem muita papas na língua responde. "Fui líder da Ku Klux Klan, escrevi vários discursos anti-semitas e segregacionistas e, só muitos anos depois me tornei um romancista. Eu escrevi o discurso para a cerimônia de posse do governador George Wallace e a frase que ficou famosa: "Segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre". Acho que até vocês, no Brasil, ouviram comentários sobre este discurso."

Cheguei a concorrer nas primárias democratas para governador do Alabama com uma chapa segregacionista. Não tive sucesso. Mesmo assim, continuei atuando por bom tempo na KKK.

Como meu relacionamento com George Wallace se deteriorou muito por ele amolecer com a proposta segregacionista, me senti traído, então decidi abandonar o política, mudar de nome e me dedicar a escrever romances. O meu mais famoso best seller foi "The Rebel Outlaw: Josey Wales” (em tradução livre, “O bandido rebelde: Josey Wales”).

“Não nego que continuo sendo segregacionista. Os brancos são superiores aos negros e aos judeus. Jesus era branco. Duvido que no céu haja negros. Nem na última ceia havia negros. Deus é branco. Os Estados Unidos tem 50 estados e somente 6 estados conseguiram eleger um senador negro. 

Infelizmente, o problema é que o país está apodrecendo  e perdendo espaço para abortistas, defensores dos direitos humanos, feministas, judeus, defensores dos LGBT'S e para o lobby antiarmas. Não sei onde vamos parar…”

  “Sinto muito”, interrompi Carter, “você é um cara legal, mas de forma alguma compactuo com sua visão de mundo. 

A tendência, no futuro, é a humanidade reconhecer que todos têm os mesmos direitos, ninguém é superior a ninguém independente de credo, cor, nacionalidade, orientação sexual, afinal somos todos moradores do mesmo planeta. 

Nosso pensamento evoluí e continuará evoluindo neste sentido. As pandemias e catástrofes naturais, num primeiro momento dividirão a humanidade em grupos. Mas, com o tempo, perceberão que a sobrevivência de um grupo em detrimento de outros, a longo prazo causará o fim de todos. 

Evoluiremos para sobreviver.

Aristoteles falava que os asiáticos eram inteligentes e covardes, os loiros do Norte eram valentes, mas ignorantes. E que somente os gregos haviam sido agraciados pelos deuses com a inteligência e a valentia. Eram superiores.

Quem apoiaria uma afirmação destas hoje?

Na Idade Média, nas Universidades ainda era discutido se camponeses estavam aptos a conviver em sociedade pela dificuldade de se expressarem na língua das cidades. Eram bichos. Daí que surgiu (nas Universidades) o termo “bicho" que precisava passar por um trote (teste) para provar sua aptidão. 

Quem concorda, nos dias atuais, que os trabalhadores do campo não estão aptos a conviver nas cidades? 

A igreja católica adotou, por muito tempo, o pensamento de Tomás de Aquino sobre hierarquia. Do Senhor, descendo aos arcanjos e anjos, chegando aos sacerdotes e passando aos leigos poderosos para atingir as pessoas comuns. 

Desta forma Deus encontra-se além de todos os nossos sentidos e apenas por intermediários recebemos a sua ajuda. 

Contra esta visão de privilégios para os que estão mais próximos a Deus, surge Calvino, para quem a comunidade é mais importante do que a hierarquia eclesiástica.

Alguns séculos depois “Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América…”

Como sociedade evoluímos muito até agora. Mas, ainda há grupos que vivem sob a régia de ideólogos autoritários do século passado. Abraçando uma cultura de relações de poder, de valorização familiar, favorável à religião, rejeitando costumes que consideram “contrários à natureza”, contrários aos movimentos de minorias como os feministas, LGBT, negros, indígenas e outros.

Você, Carter, não percebe que sua aceitação cega, sem questionamento, no que diz sua religião e na doutrinação que teve quando criança da superioridade da raça branca te impedem de aceitar fatos que contrariam seus pressupostos?. 

Você consegue entender como é limitante o seu modo de pensar? 

Sua visão de hierarquia de raças, sua crença em povos escolhidos por um suposto Deus, sua crença em vida pós-morte, tudo isto limita nossa responsabilidade, como humanos, com a continuidade da vida no planeta. 

E o pior, não valoriza o aqui e agora, banaliza o fato extraordinário de estarmos vivos, de pensarmos e sentirmos e glorifica uma suposta vida após a morte ao lado de um suposto criador.

Carter, você não enxerga que o seu nacionalismo irrestrito é semelhante ao fanatismo religioso? 

E que o seu nacionalismo contempla todos os cinco "sinais de alerta” de quando a religião se torna má, descritos por Kimball em seu livro When Religion Becomes Evil (em tradução livre, “Quando a religião se torna má”).  

Se você não os conhece, os 5 sinais são: 

1-afirmações de uma verdade absoluta, 

2-obediência cega, 

3-noção de que o mundo não é perfeito, mas no tempo certo Messias virá

4-os meios justificam os fins e 

5-a declaração de Guerra Santa.

Eu enxergo que a religião pode até dar uma contribuição para a vida política, mas, na maioria dos países, é uma influência negativa. Muitas vezes sendo hipócrita, arrogante e autoritária. Desperta impulsos, às vezes irracionais que podem causar estragos. E frequentemente gera intolerância à outras religiões e predisposição à violência. 

“Luiz, eu te ouvi atentamente”, comenta Carter, “agora, por favor, me escute e sem me interromper, OK? E aproveita para tomar outra cerveja com calma.

Não consigo provar a existência de Deus, mas há muitas razões para acreditar em Deus. A primeira é que nada que a ciência descobriu explica a existência do Universo. O Universo é tão perfeito e belo que sugerem que uma mente racional está por trás de tudo. Assim como a existência de seu iPod demonstra que existe alguém que o inventou, o mundo em toda sua complexidade aponta para a existência de um Criador, Deus. 

No que diz respeito à origem do mundo, a Bíblia diz que Deus o criou (Gênesis 1:1, João 1:3, Hebreus 11:3). O livro de Gênesis declara que a criação é boa e diz que Deus ficou satisfeito com sua obra. 

Numa coisa você tem razão, o mais importante é entender o   porquê. Por que Deus criou o homem?

São Tomás diz que o objeto de Deus ao criar foi Ele mesmo; Ele criou para manifestar sua própria bondade, poder e sabedoria e se agrada daquele reflexo de Si mesmo. 

Deus é a fonte, centro e objeto de toda a existência. Esta é, portanto, a razão suficiente para a existência do universo.

O homem tem que se conformar ao propósito supremo da criação e não discuti-la. 

A doutrina da Trindade é o ponto central da minha religião, o Cristianismo. Deus é uma relação de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo. A essência de Deus é relacionamento.

O plano de Deus foi unir todos as pessoas de fé na terra e no céu através de seu Filho Jesus Cristo (vide Efésios 1: 9-10).

 Na minha visão a família é o base de tudo. Fomos criados para  nos relacionarmos com Deus, com nossa família e com as pessoas que pensam como nós.

Não dá para argumentar com infiéis, traidores, negros, defensores do aborto e do movimento LGBT. Só nós resta lidar com eles pela força.  Essas pessoas possuem crenças para as quais não há justificativa, e são impossíveis de serem toleradas por pessoas de bem. Elas estão contaminando e destruindo nossa sociedade. Nesta situação, a melhor alternativa para garantir nossa sobrevivência é atacá-las, enfraquecer sua base de sustentação. Isso parece criminoso, mas pode ser o único curso de ação disponível para nós, dado o que no que essas pessoas acreditam e defendem”.

Eu não conseguia acreditar o que estava ouvindo. Para dar um respiro antes de retornar ao assunto, eu disse que  precisava ir ao banheiro: “Muita cerveja, preciso dar um pulinho no toalete, volto logo…”.

Quando retornei à mesa só encontrei meu copo de cerveja e o que sobrara meu do Rothenburger Ritterrolle (um tipo de wraps de pão achatado que lembra um burrito). 

Não estava lá nem o copo de cerveja dele e nem o prato de Bierschinken wurst (linguiça de presunto) que ele estava comendo. Logo pensei: "Carter não gostou do meu comentário”.

Chamei o garçom e perguntei do meu companheiro. E ele me responde com um ar de espanto: “Me desculpe, ele saiu e disse que o senhor pagaria a conta.”.

Desconfiei do garçom, mas não disse nada. Agradeci, paguei a conta e voltei para o hotel. 

Chegando lá , pedi para a recepcionista ligar para o quarto de Asa Carter. Ela me informa que ninguém com esse nome estava hospedado lá. Pedi para tentar por Forrest Carter. 

“Senhor, não tem nenhum Carter neste hospedado neste hotel”.

Fui pesquisar na internet se havia existido Asa Carter.  Assustado descobri que Carter havia falecido em 1979…

Quem se passou por ele? 

E por quê? 

Quem foi Carter na vida real? 

Decidi pesquisar. Eu precisava entender o significado daquilo tudo. Afinal sou um ENFP e como tal, tenho a tendência de ver  todas as coisas como parte de um grande e misterioso quebra-cabeça chamado vida.

Tudo o que meu suposto colega, o desconhecido farsante, disse era verdade. Carter nasceu em 1925 e realmente escreveu o discurso contendo a famosa frase "Segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre", e concorreu nas primárias democratas para governador do Alabama em uma chapa segregacionista. 

Anos depois, sob o pseudônimo do suposto escritor Cherokee Forrest Carter, escreveu The Rebel Outlaw e The Education of Little Tree, livro premiado e best-seller que foi comercializado como um livro de memórias.

Eu tive a curiosidade de ler o livro “O Aprendizado de Pequena Árvore (em inglês, The Education of Little Tree) para tentar entender Carter um pouco melhor.

O livro conta a suposta infância do autor com os avós meio-cherokee (Vovô e Granma). Se passa nos anos 30, auge da Grande Depressão. Após ficar órfão, Pequena Árvore, nome indígena de Carter, foi morar com seus avós nas montanhas, nesse período de convivência com os índios Cherokees teve a oportunidade de conviver com a natureza aprender seus segredos, e mistérios.

A história se passa do quinto ao décimo ano de vida do menino, quando ele conhece seu novo lar em um vale remoto na montanha.

O livro é tocante, enche nossos corações de esperança. Traz a mensagem que devemos “recolher da natureza apenas o necessário para sua vida”. 

Forrest Carter relatando a sua infância, nos faz refletir sobre a nossa própria vida, o que é “necessário” para sermos verdadeiramente felizes?

A medida que lemos nos encontramos, escalamos montanhas, cruzamos rios e choramos por Pequena Árvore, por nós, pela vida…Conhecendo as coisas do mundo: que há religiões que dividem em vez de unir as pessoas, que há os que praticam o bem e os que permitem a maldade, que existe o “eu” e que existe o “outro”, e que podemos ser felizes, viver em paz, todos juntos. 

Somos um povo só, a terra é um mundo só. As injustiças cometidas com os índios Cherokee no inicio do século passado, relatadas pelo avô de Pequena Árvore, acontecem também hoje, com os índios, com a natureza. Somos levados a perceber que cometemos estas injustiças, assim como todos, sem exceção, pois estamos ligados na “teia” da vida.

O final comovente enche de lágrimas nossos olhos, mas antes, faz rir, pensar e fundamentalmente mexer com nosso jeito de olhar tudo ao redor, as pessoas, a natureza, os índios e nós mesmos.

Lendo o livro fiquei horrorizado como um segregacionista, líder da Ku Klux Kan, conseguiu ser tão maquiavélico a ponto de escrever “O Aprendizado de Pequena Árvore” somente para se lançar como romancista e criar uma nova vida como Forrest Carter, baseando-se em memórias familiares fantasiosas e fraudulentas, como ficou provado anos depois.

Nunca me esquecerei de Rothenburg ob der Tauber e do  meu colega misterioso.

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