Tivemos sorte, chegamos numa semana ensolarada do início do verão, ideal para caminhadas.
Não fazia frio e o céu azul intenso deixava o pico branco das montanhas ainda mais convidativo.
Eu e a Marlene sempre gostamos de caminhar sozinhos. Só nós dois. Já tínhamos tido experiências negativas caminhando em grupo, mas, nossos colegas insistiram tanto que fomos num grupo de 12 pessoas pro Canadá com o objetivo fazer a trilha do “Kananaskis Alpine Traverse”.
Culpa nossa. Já havíamos feito esta trilha 3 anos atrás. Compartilhamos com eles nossas “histórias” tão empolgadamente que ficaram com vontade de fazê-la também. Sem falar com a gente, Fernando juntou o grupo, organizou a aquisição das passagens, vistos, lista das roupas e itens da mochila. Depois de tudo pronto, fomos intimados a servir de “guias”...
Eu e Marlene ficamos muito chateados. Nem todos tinham experiência em caminhadas longas. Dois casais nunca tinham acampado. Fernando estava levando a irmã e o namorado, Valdir, que nem conhecíamos.
Antes de sair do Brasil, reunimos todos eles, falamos da importância de não carregar absolutamente nada a mais na mochila. Da importância de cuidar bem dos pés. Inspecionamos as meias e botas que estariam usando. Uma bota inadequada ou não amaciada anteciparia o final da jornada. Praticamos pequenas trilhas com as mochilas carregadas, fizemos o pessoal montar e desmontar as barracas e, até cozinhar... Assinamos um código de conduta. Ficou claro (pelo menos, eu acreditava que sim) que era necessário respeitar os limites de cada um e as diretrizes dos guias (eu e Marlene).
Neste tipo de jornada nós confiamos nossa segurança nas forças e fraquezas dos outros. Trabalho em equipe é essencial.
Parecia tudo bem. Saímos do Brasil num alto astral. Todo mundo animado.
Passamos 3 dias em Vancouver para fazer um pouco de turismo e aquecimento... De lá um vôo até Calgary e de Calgary, de ônibus para Canmore, nosso ponto de partida.
O primeiro dia de trilha, paisagens lindíssimas ao redor do Upper Lake, passamos por Hidden Lake e acampamos perto Aster Lake.
Nenhum incidente de destaque, exceto o aborrecimento de conter o ímpeto do Valdir e da namorada, que aceleravam o passo e passavam a nossa frente. Por duas ou 3 vezes, tivemos que lembrá-los do nosso acordo.
Nesta região o resgate é bastante complicado. Todo cuidado é pouco.
No segundo dia, a meta era chegar a Northover ridge. Uma caminhada de pouco mais de 10 km, porém subiríamos cerca de 1.000 metros. Bastante cansativa e mais perigosa. Desta vez, Valdir tornou-se um problema. Por ser mais jovem e possuir melhor preparo física que os outros, achou que podia desrespeitar nossas limitações e sentir-se livre do grupo. Ele e a namorada queriam tirar o máximo do passeio, explorar a região e tirar fotografias em pontos fora da trilha. Se afastar do grupo, em trilhas como essa, é um grande risco.
Apesar do verão e céu azul, durante o dia a temperatura média é de uns 12 graus, a água dos rios gelada e o tempo pode piorar rapidamente nesta região. Para a altitude que estávamos nos dirigindo encontra-se neve congelada. Manter os pés secos e aquecidos é absolutamente necessário.
Por causa do esforço, nossas camisetas e meias ficam úmidas de suor, mas não sentimos frio durante a caminhada.
Quando paramos para montar o acampamento, as coisas mudam. O vento frio passa a incomodar. A primeira coisa que temos que fazer é trocar a roupa que está em contato com o corpo, principalmente meias.
No final da tarde, quando paramos para armar as barracas, Valdir, sentindo-se bem, só colocou um agasalho mais quente, apesar de nossa insistência da necessidade de trocar as meias e a roupa de baixo imediatamente. Depois de arrumar suas coisas e ficar conversando e revendo as fotos, comeu bem pouco e foi dormir.
No meio da noite, sua namorada entra na nossa barraca assustada. Valdir estava tremendo muito, cheio de calafrios. Não estava nada bem.
À noite a temperatura cai bastante. A camiseta e principalmente as meias “úmidas” roubam o calor do corpo de forma impressionante.
Por não nos ouvir, por não assumir a responsabilidade por si mesmo, Valdir colocou todos nós e nosso projeto em risco.
Quando um projeto depende do trabalho de equipe, não pode haver estrelismos.
Precisamos entender que outros dependem de nós e nós dependemos de outras pessoas.
Não dá para querer ser o herói ou resolver tudo sozinho. Não tem essa de querer chegar primeiro. Se houver competição entre os membros do grupo, não haverá vencedores. Todos perderão.
A experiência acumulada e a cultura do grupo precisam ser respeitadas. Pequenos detalhes, para os recém-chegados, como trocar as meias e a camiseta suada, não podem ser desprezados ou ignorados sem antes entender o porquê. Comunicação, transparência e confiança mútua são os ingredientes básicos de uma boa relação na equipe.
Quanto maior o risco do empreendimento, mais espírito de “equipe” o grupo precisa ter.
Valdir aprendeu a lição. O grupo todo teve que voltar para Canmore. Perdemos 6 dias de nossas férias. Fernando e a namorada ficaram com ele. E nós, o resto do grupo, sem nenhum sentimento de culpa reiniciamos a trilha do marco zero.
Cansados, mas felizes, numa noite escura de poucas estrelas, cantamos “La Montanara” pela vitória de ter concluído o “Kananaskis Alpine Traverse” chegando ao pico do Sir Douglas.
Para Valdir nunca mais se esquecer do significado de equipe tiramos uma foto do grupo, no topo da montanha, com nossa bandeira improvisada: uma meia pendurada na ponta de nosso bastão de trekking...